Dia da Mulher: Conheça a história da primeira publisher de um dos maiores jornais do mundo, e que mudou os rumos da política americana com seu trabalho

Katharine Graham assumiu o comando do The Washington Post em 1963 e esteve à frente da cobertura dos escândalos de Watergate e dos Papéis do Pentágono, mas ainda assim enfrentou resistência e dúvidas sobre sua competência

Reportagem: Marcella Franco
Imagem: Library of Congress, Prints & Photographs Division, LC-DIG-ppmsca-55247/Divulgação/Comunicação Butantan

Katharine Graham é a única mulher na sala de reuniões. O ano é 1971, e ela está no comando do The Washington Post, um dos maiores jornais dos Estados Unidos e do mundo. Enquanto se alternam opinando, os homens presentes ao encontro aguardam pacientemente uns aos outros, mas, quando Katharine pede a palavra, é interrompida e ignorada pelo grupo. 

A trajetória de Katherine, ou Kay, como ficou conhecida, não foi fácil até conquistar o respeito profissional que uma publisher de seu porte deveria receber. A cena narrada acima, por exemplo, é retratada no filme “The Post - A Guerra Secreta” (2017), em que a atriz Meryl Streep interpreta Kay. A trama nos cinemas foca em um momento importante do jornal, quando ela e o editor Ben Bradlee decidiram publicar os Papéis do Pentágono, documentos ultrassecretos que revelavam a atuação dos EUA na Guerra do Vietnã.   

Katharine Graham, primeira publisher mulher do The New York Times
 

A mulher que teve coragem de mudar a história da política nos EUA nasceu em 1917, em Nova York. Em 1933, seu pai, o multimilionário Eugene Meyer, comprou o The Washington Post em um leilão de bens falidos. Quando se aposentou, em vez de oferecer a administração do negócio à filha, a entregou ao genro, Philip Graham, marido de Kay.

Na ocasião, Meyer explicou que “homem nenhum deveria se ver na posição de trabalhar para a própria esposa”. A declaração foi publicada nas memórias que Katherine lançou em 1997, “Personal History” – o livro foi o vencedor do Prêmio Pulitzer de Biografia e Autobiografia do ano seguinte. “E, curiosamente, eu estava de acordo com essa ideia dele”, Kay afirmou no livro.

Juliana Araújo, diretora de Desenvolvimento Humano e Organizacional da Fundação Butantan, aponta o preconceito de gênero e a resistência da própria família das mulheres dos anos 1960 como obstáculos ao sucesso profissional – naquela época, era comum que pais e maridos temessem o “abandono” do seio familiar como consequência da entrada da mulher no mercado. 

“Embora tenhamos avançado significativamente, alguns desafios ainda persistem. A desigualdade salarial, a baixa representatividade feminina em cargos de alta liderança e o viés inconsciente em processos de promoção continuam sendo obstáculos reais. Além disso, a sobrecarga com as responsabilidades domésticas ainda recai, em grande parte, sobre as mulheres, dificultando o equilíbrio entre vida pessoal e profissional. Muitos líderes ainda carregam a crença equivocada de que a maternidade reduz a capacidade de entrega de uma profissional, reforçando barreiras invisíveis. Por isso, é fundamental estarmos atentos aos vieses inconscientes e trabalharmos ativamente para combatê-los”, afirma a diretora. 

A americana Katharine Graham finalmente teve a oportunidade de assumir seu posto quando seu marido morreu, após uma longa luta contra doenças mentais. Trinta anos depois da compra do jornal, Kay, aos 42 anos, já trabalhava na redação do Post havia uma década, ocupando cargos de pouca importância, mas ao mesmo tempo ganhando experiência no jornalismo. Seus conhecimentos no mundo dos negócios, no entanto, eram pífios. Por isso – e pela objeção generalizada às figuras femininas na liderança –, as expectativas quanto à sua gestão eram baixas, e demorou até que ela conseguisse provar sua competência. 

“Os homens também são submetidos a diversas provações, principalmente se acrescentarmos às suas trajetórias de vida os marcadores sociais, como poder aquisitivo, origem social, raça, entre outros. Mas isso não se compara ao ciclo de obstáculos que uma mulher vivencia durante a vida, e ainda mais no ambiente profissional”, avalia Anna Feldmann, professora do curso de jornalismo da PUC-SP. 

“Dentro da perspectiva pré-concebida de que as mulheres pertencem à vida privada, o espaço público para nós ainda é uma conquista. E conquistas como a de Katharine Graham questionam não só a hegemonia patriarcal, mas o poder de influência e decisão que as mulheres podem exercer no jornalismo e no mundo.”

Feldmann cita a escritora francesa Simone de Beauvoir, que contestava a estrutura hierárquica e a naturalização das relações sociais que, durante séculos, sustentaram as desigualdades entre gêneros. Para Beauvoir, a liberdade é uma escolha incondicional que o indivíduo faz do seu ser e do seu mundo. “Ou seja, para Graham comprovar sua competência profissional, foi preciso escolher romper com obstáculos políticos historicamente inimagináveis, exaltando valores democráticos e a liberdade de imprensa”, diz a professora. 

Na época em que Katharine Graham assumiu a posição de publisher no Post, em setembro de 1963, as mulheres ocupavam apenas 20% dos empregos no jornalismo americano. Em 2024, de acordo com um levantamento do Reuters Institute, só 24% dos editores em veículos dos cinco continentes analisados eram mulheres – elas preenchiam 40% dos cargos no total. 

“Apesar de as estatísticas mostrarem que cada vez mais mulheres estão se formando e entrando no mercado de trabalho jornalístico, elas ainda ganham menos do que os homens. Ainda existe o conhecido ‘teto de vidro’ que as impede de ascender aos cargos de chefia com poder de decisão e melhores remunerações. E, mesmo quando contam com um nível educacional mais alto, ainda ganham menos que os homens”, afirma Feldmann. 

Imagem do filme "The Post", com Meryl Streep no papel de Katharine Graham

Com a descrença dos que a rodeavam, e sem outras mulheres em posições similares à sua em quem se inspirar, Katharine se viu muitas vezes em dúvida sobre a própria capacidade de seguir. Ela havia amadurecido se enxergando como uma “doormat woman” (“esposa capacho”), como confessou em suas memórias, e agora era cobrada por si mesma e pelos outros. 

Para Anna Feldmann, não é fácil ter coragem e perseverança em ambientes de trabalho muitas vezes hostis, e apenas o apoio mútuo tem o poder de quebrar a prática machista e colocar a sororidade em ação. 

“Os problemas que as mulheres sofrem no ambiente profissional são questões de ordem pública e devem ser encarados como tal. Se a mulher encara esses fenômenos como algo exclusivo que ocorre apenas com ela, a tendência é adoecer e deixar de confiar em si mesma. Mas, a partir do momento que ela encara o fato como algo político, ou seja, acontece com todas e não apenas consigo, já está exercendo resistência”, avalia.  

A diretora Juliana Araújo também defende a cooperação entre as mulheres como caminho para os avanços no mercado de trabalho, especialmente em prol das próximas gerações. “Podemos fazer isso criando e ampliando redes de apoio, aprendendo a nos posicionar sem medo de buscar nossos objetivos e acreditando mais no próprio potencial”, afirma.

“Muitas mulheres possuem plena competência técnica e comportamental para assumir novas posições, mas hesitam em se candidatar, muitas vezes por já terem sido subestimadas ao longo de suas trajetórias. Por isso, investir em autoconhecimento, equilíbrio emocional e desenvolvimento pessoal é essencial. Fortalecer a confiança e reconhecer o próprio valor são passos fundamentais para quebrar barreiras e alcançar novas oportunidades”, avalia.

Juliana Araújo, diretora de Desenvolvimento Humano e Organizacional da Fundação Butantan

Katharine Graham provou seu valor definitivamente, silenciando seus críticos, ao apresentar resultados incontestáveis à frente do The Washington Post na revelação de dois grandes escândalos na política americana. Nos Papéis do Pentágono, o jornal deu início à publicação de uma série de reportagens em 18 de junho de 1971, cinco dias depois que o concorrente The New York Times deu o furo trazendo a público as revelações sobre a administração de Richard Nixon. Os dois veículos, junto com The Boston Globe e St. Louis Post-Dispatch, foram posteriormente processados pelo governo, como escreveu o jornalista Sanford J. Ungar em seu livro “The Papers and The Papers”, de 1972.

Posteriormente, Katharine comandou a atuação do Post no episódio de Watergate, que culminou na renúncia de Nixon e consolidou o veículo como um ícone do jornalismo investigativo mundial. Em 17 de junho de 1972, cinco homens invadiram a sede do Comitê Nacional Democrata americano para espionar os adversários do presidente durante a campanha de reeleição. A princípio, a polícia investigou o caso como uma invasão simples, mas o The Washington Post desvendou uma trama mais intrincada e comprometedora.

Os repórteres Bob Woodward e Carl Bernstein seguiram pistas, entrevistaram fontes e receberam informações valiosas, ao mesmo tempo em que eram pressionados pelos aliados de Nixon a desistir da apuração. Katharine Graham não recuou: ordenou que as matérias continuassem a ser publicadas, até que em 1973 veio a descoberta crucial. 

Em seu escritório na Casa Branca, Nixon mantinha um sistema de gravação, e muitas conversas relacionadas ao Watergate tinham sido registradas, comprovando o envolvimento do presidente. Em agosto de 1974, Richard Nixon renunciou ao cargo para evitar um processo de impeachment, e foi sucedido por seu vice, Gerald Ford.

Katharine, Woodard e Bernstein foram amplamente elogiados pela coragem, e os repórteres receberam o Pulitzer de jornalismo por suas reportagens. No mesmo ano, Kay se tornou a primeira mulher eleita para o conselho administrativo da Associated Press.

Diversas outras conquistas foram engordando o currículo da publisher ao longo dos anos. Em 1988, por exemplo, ela foi eleita membro da Academia Americana de Artes e Ciências, e em 2000 foi nomeada uma das 50 Heroínas da Liberdade de Imprensa do Instituto Internacional da Imprensa nos últimos 50 anos. Em 2002, foi agraciada postumamente com a Medalha da Liberdade Presidencial pelo presidente George W. Bush, e integrada ao Hall da Fama Nacional das Mulheres dos EUA. 

Katharine Graham morreu em 17 de julho de 2001, aos 84 anos, depois de um acidente em que bateu a cabeça na cidade de San Valley, no estado americano de Idaho. Está enterrada no histórico cemitério Oak Hill, do outro lado da sua antiga rua de casa, em Washington.

 

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