João Carlos Martins: “Um bom maestro tem uma liderança não autoritária, mas democrática”

Pianista e maestro brasileiro fala sobre a superação de desafios ao longo da carreira; em 2025, aos 84 anos, ele anunciou seu último concerto internacional

Reportagem: Marcella Franco
Imagens: Claudio Alves/Speed Comunica 

Aos dez anos de idade, o português José foi trabalhar em uma gráfica na cidade de Braga. Operava as prensas enquanto fantasiava ter um piano e tirar dele lindas músicas. Mas, num acidente, José perdeu um dos polegares, e o sonho que era seu acabou entregue aos filhos décadas depois, para que eles dessem conta de realizá-lo. Foi assim que, antes mesmo de ser alfabetizado, o menino João Carlos Martins se sentou pela primeira vez ao instrumento comprado pelo pai.

José emigrou de Portugal para o Brasil e se instalou em São Paulo, onde nasceram João Carlos e seus dois irmãos. O desígnio de engendrar um pianista na família fez com que o contato do menino João Carlos com o alemão Johann Sebastian Bach se desse bem cedo – já aos oito anos, ele desbancou os adversários em um concurso em que executou suas obras para piano com perfeição.

Aos 20, João Carlos estreou no Carnegie Hall, famosa sala de concertos de Nova York. Cinco anos depois, ainda nos Estados Unidos, foi convidado a integrar o time da Portuguesa que treinava no Central Park. Caiu, e uma pedra perfurou seu braço na altura do cotovelo, atingindo o nervo ulnar. Três dedos ficaram atrofiados, foi necessária uma pausa de um ano, e o músico então adotou dedeiras de aço para tocar piano outra vez.

Não foi a única provação a que ele seria submetido. Em 1995, sofreu um assalto na Bulgária, e levou um golpe de barra de ferro na cabeça. As graves sequelas neurológicas afastaram temporariamente João Carlos do instrumento e, um dia, ele sonhou que o maestro Eleazar de Carvalho o ensinava a reger. Tornou-se maestro perto dos 60 anos, e em 2003 criou a Orquestra Bachiana, que logo depois se tornaria também uma fundação. 

Agora, em 2025, anunciou sua despedida dos palcos internacionais, mas brinca que a receptividade do público já o fez questionar a decisão. Em 1998, aos 58 anos de idade, ele também teve a impressão de que diria adeus de forma definitiva. Estava no camarim do Barbican Centre, em Londres, prestes a se apresentar para milhares de pessoas, e fazia poucas horas que tinha recebido dos médicos a notícia de que precisaria de outra cirurgia na mão direita. Entendeu, ali, que nunca mais tocaria piano na vida, e entrou comovido no palco.

“Por uma fração de segundo, sinto uma presença ao meu lado”, lembrou o maestro em uma entrevista anos depois sobre a ocasião. “Trata-se de um menino que só eu vejo. José é seu nome. José não viu os elogios que a crítica inglesa teceu ao pianista que está se apresentando naquela noite. Não sabe que ele consolidou uma carreira musical interpretando Bach com toda sua alma e paixão. Mas é graças a ele que estou aqui. Nos anos seguintes, o menino tomou-se homem, e esse homem tomou-se meu pai. E seu amor à música é ponto de partida de minha história.”

Leia abaixo a entrevista que o maestro e pianista João Carlos Martins concedeu ao site da Fundação Butantan. 

*

Quando o senhor sofreu a lesão que o fez precisar parar de tocar piano, chegou a pensar em desistir?

A lesão, realmente, eu tive aos 27 anos. Mas, graças ao New York University Hospital, fui curado. O meu verdadeiro problema é uma doença rara, chamada distonia focal do músico, que tenho desde os 23 anos e, até hoje, não tem uma solução nem clínica e nem cirúrgica. Cada transição na minha carreira foi um recomeço. A vida me desafiava a mais de uma vez mudar o rumo com a distonia focal, mas nunca pensei em abandonar a música. Hoje em dia uso as minhas luvas biônicas e, mesmo tendo realizado cerca de 30 cirurgias, eu sabia que deveria continuar servindo à arte.

Por conta das sequelas dos acidentes, o senhor se dispôs a decorar inúmeras páginas de sinfonias, para poder regê-las sem precisar folhear as partituras. Como treinou e desenvolveu essa habilidade mental?

No que diz respeito à memória, sem humildade, eu digo que graças a Deus, desde os oito anos, eu tenho uma memória profundamente gratificante. Tanto é que, quando eu tinha 12 anos – e isso comprovado no Colégio Liceu Pasteur –, uma das brincadeiras que fazíamos na escola era eu ler uma página, fechava o livro, e conseguia escrever a página inteira com um ou dois erros no máximo (risos). Depois, decorei as principais obras de Bach para teclado. Cheguei a dar, em 18 noites, cerca de 17 recitais com as obras de Bach, todas de cor, em torno de uma hora de concerto.

O senhor também fundou projetos sociais, como a Fundação Bachiana, que nasceu com o propósito de desenvolver jovens músicos. Quais são os principais desafios que um músico erudito em início de carreira enfrenta? 

Cada dia vai ficando mais difícil. Há 50 anos era mais fácil (risos). Primeiro, você precisa ser um diamante para ser lapidado. Depois, precisa ter a disciplina de um atleta para cumprir o seu ofício e, ao mesmo tempo, o dom de Deus. Esse dom de Deus significa 2%, e a disciplina do atleta é 98%. Além disso, tem que existir o fator sorte, para estar no lugar certo e na hora certa para iniciar uma carreira internacional. Então, são muitos os desafios mas, nessa hora, é importante a determinação. Quando a pessoa é focada e tem determinação, ela atinge o seu objetivo. 

O senhor acredita em um estilo de liderança mais autoritário, colaborativo ou inspirador? Como definiria sua forma de conduzir?

Tenho um estilo de liderança democrático. Ser um bom maestro é você ter uma liderança não autoritária, mas uma liderança democrática. Assim, a orquestra e o trabalho acabam sendo uma família e não um local onde possam existir polêmicas. Agora, o som de uma orquestra, esse é o som do maestro.

Uma curiosidade em seu currículo é o período em que o senhor cuidou da carreira do pugilista Éder Jofre. Conte um pouco desse período.

Eu precisei interromper a minha carreira por quase sete anos devido à distonia focal do músico. Nessa época, eu me mudei de Nova York, vim morar no Brasil, e o Éder Jofre morava no prédio do meu pai. Eu o encontrei no elevador e falei que ele precisava recuperar o título mundial, na época ele já tinha 37 anos. Ele achou que estava velho, mas sugeri que, se ele quisesse, eu patrocinava a luta. No dia seguinte, ele me telefonou e falou que ia começar a treinar. Lembro que, no momento em que o juiz levantou as mãos do Éder como vencedor que conquistou o título mundial, naquele momento eu falei “Se ele recuperou o título mundial, eu tenho que voltar a tocar piano”.

Há valores que o senhor considera inegociáveis em uma orquestra?

Inegociável é uma orquestra que transmite emoção. A orquestra, junto do maestro, tem a obrigação de transmitir emoção ao público que foi assisti-la.

O senhor tem dicas para os profissionais de quaisquer áreas sobre como transformar uma limitação em potência? 

Fazer de uma adversidade não um salto para o abismo, mas a construção de uma plataforma para voar mais alto.

O senhor está em um processo de despedida dos palcos. Há coisas que nunca pôde fazer e que pretende realizar depois desse encerramento de jornada? 

Na verdade, fiz a minha despedida internacional, mas continuo regendo concertos no Brasil. Mas, no final do meu último concerto no Carnegie Hall, em Nova York, quando vi a resposta do público, eu brinquei que já fiquei na dúvida se essa foi, de fato, a minha despedida internacional (risos).
Vou continuar os próximos anos regendo, mesmo que sejam menos concertos. Durante um ano inteiro, faço praticamente cem apresentações, além de 70 ensaios. Então, estando agora próximo dos 85 anos, vou diminuir um pouco a atividade e dedicar a minha vida a ajudar a ciência com informações sobre a distonia focal do músico, e a tocar meu projeto de musicalização nas escolas. Quero tentar realizar o sonho de Heitor Villa-Lobos, que era de desenhar o mapa do Brasil em formato de coração, através da música. 

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